CAPÍTULO I - INTRODUÇÃO
Abstract
A cicatriz que carrego comigo desde os meus 3 anos, a que fiz no pé esquerdo com o fundo de uma garrafa verde, é parte do meu património. Porque sendo cicatriz hoje, é reflexo da passagem do tempo (um dia foi uma ferida aberta no meu pé). Porque revejo nela um momento específico da minha história de vida. Porque a esse tempo me individualiza, na sua forma, no facto de estar alojada no meu pé esquerdo e não em todos os pés esquerdos de todos os homens e mulheres e crianças do mundo. Porque transporta consigo uma recordação (diria quase a única que tenho desse período da minha vida, ainda que possa até ser uma memória ‘emprestada’ pelos meus pais, e por conseguinte não ser efectivamente uma memória real do dia em que cortei o meu pé).
A minha cicatriz é ainda parte do meu património porque com ela estabeleço uma relação afectiva única que se torna também, e a esse tempo, a prova de que existi como pessoa aos três anos de idade, ainda que não me lembre desta minha condição de existência. A esse tempo estabeleço com ela também uma relação de estranheza. Uma estranheza espacio-temporal. De um espaço que não consigo reconhecer (não cresci nesse espaço e mesmo que tivesse crescido o tempo encarregar-se-ia de o transformar) e de um tempo que não recordo. A não ser (julgo) através das imagens que criei mentalmente desse espaço e desse momento e que resultam, insisto, no facto de essa história me ter sido, exaustivamente, contada ao longo dos anos, com uma descrição profunda de todos os factos que aqueles que me assistiram consideraram fundamentais e foram capazes de memorizar.
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